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Arte

26/03/2015

Salina: teatro mágico da ancestralidade

Por Wagner Correa de Araujo | Foto Daniel Barbosa
Mulher sentada lavando um tecido com sangue en cena de Salina
Convite a uma experiência mimética de vivências ancestrais, com eco nos dilaceramentos civilizatórios do século XXI

Esta é a contagiante experiência que, em incrível coesão, vivem atores e espectadores no transcendente rito do teatro total de Salina – A Última Vértebra, a mais nova criação da Cia. Amok.

De autoria do premiado escritor e dramaturgo Laurent Gaudé, a peça, através da trajetória de amor e ódio, vingança e perdão da personagem-título, estabelece um painel dialético entre forças míticas num clima de tragicidade grega.

Nela o sagrado evoca também o carnal, numa ambiência étnica, ora da aldeia africana com seus opressivos costumes morais ora das manifestações da natureza, das águas tranquilas de um rio à aridez de um deserto.

Bodas impostas trazem filhos não desejados, com sentimentos de revolta e humilhação transmutados em ira e repulsa. Que atingem as gerações seguintes na remissão de ofensas, em duelos de guerreiros da mesma genealogia.

Tudo isto em cenas de belíssima construção épica que, às vezes , remetem aos samurais de Kurosawa.

No elenco de atores, predominantemente negros, há um tal equilíbrio expressivo de performances que torna difícil a individualização de destaques.

Desde Ariane Hime (Salina), Luciana Lopes (Mama Lita), André Lemos (Saro Djimba), Thiago Catarino (Kano) e, ainda, Sergio Ricardo Loureiro, Tatiana Tibúrcio, Graciana Valadares, Sol Miranda, Reinaldo Júnior e Robson Freire, todos com um notável brilho próprio.

A movimentação gestual (Tatiana Tibúrcio) traz um rico fraseado coreográfico de base étnica afro-brasileira, das rodas de candomblé ao congado, acentuado pelo especial desenho das luzes (Renato Machado).

A enérgica música ao vivo (Fábio Simões Soares) com instrumentos típicos estabelece o clima ideal de transe, transubstanciado no estilístico figurino e nos elementos cênicos regionais (em feliz concepção dos diretores).

Enfim, este sequencial processo criativo entre o mítico e o ritual atinge, no comando de Ana Teixeira/Stéphane Brodt, o componente estético ideal, fazendo de Salina um fenômeno raro de prestidigitação cênico/poética.

Capaz, diante do confronto dos seus caracteres de fatalidade, a partir de um grito contra a submissão, conduzir à reflexão pela catarse da tragédia, pois se aí, segundo Nietzsche,

“O escravo se torna livre, então rompem-se todas as barreiras rígidas e hostis que a miséria, o arbítrio e a moda insolente criaram entre os homens”.
Esta notícia foi publicada no site Outras Palavras em 24 de Março de 2015. Todas as informações nela contidas são de responsabilidade do autor.
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